terça-feira, abril 05, 2005

OLHO VIVO!

Fim de carnaval, época maldita, na qual a mídia vem de rodão obrigando-nos a nos divertir, mesmo que não gostemos de samba, axé, calor, ginga e alegria popular. Querendo me juntar aos meus semelhantes, fui tentar a sorte em Salvador, afinal, lá não tem samba. Maldições, deveria ter ficado em Brasília. O pior foi o que se seguiu, quarta-feira de cinzas não havia mais passagens de ônibus para voltar ao DF. O rapaz da rodoviária colocou as alternativas na mesa: “Meu rei, fica aqui, onde o carnaval ainda vai durar mais duas semanas, ou vá de cidadezinha em cidadezinha até Brasília. Agora mesmo, tem um ônibus saindo para São Judas do Concal Doce. De lá você pega outro até Deodato e assim por diante, até ter um direto para sua casa.”

“Mais duas semanas de carnaval?!?! Prefiro tentar a sorte na estrada, me vê uma passagem para esse tal de São Judas.”

Depois de seis horas saracoteando dentro de uma sauna sobre rodas que chamam de ônibus, junto com trinta outras pessoas, duas galinhas e um porco, parando de cidadezinha em cidadezinha, chegamos na parada final, São Judas do Concal Doce, o fim do mundo, na minha opinião. Uma estrada de terra com casas de barro em ambos os lados, uma igreja, uma delegacia, um colégio, uma rodoviária, em fim, um de cada coisa que uma vila deveria ter. Acho que nem Clint Eastwood se sentiria em casa num lugar inóspito desses.

Assim que saí do ônibus, fui correndo para o guichê – o único, claro – para comprar passagem para Deodato. “Meu rei, você acabou de perder a condução, hoje só depois de amanhã.” Desolado, fui me sentar nas cadeiras de madeira que ficavam sob o teto de zinco que chamavam de rodoviária para decidir o quê fazer. Ficar aqui? Ir para outra cidade? Voltar para Salvador? Estava entorpecido pelo calor, olhar distante, ouvindo as moscas zumbirem sobre a cabeça. De repente uma mão gelada toca o meu rosto. Levo um baita susto. Focalizo a visão e tem um homem parado, seu pélvis a centímetros do meu nariz. Sua mão suada ainda pousada na minha bochecha.

“Filho da puta!”, grito, e empurro o cara, que cai sentado no chão e rola descontroladamente para os lados.

O movimento da rodoviária cessa. Todos olham para a cena: eu de pé, o cara no chão, agonizando. “Ele empurrou o ceguinho!”, alguém grita. Logo, aparecem uns dois negões para ajudar o sujeito a se levantar. Não deu nem tempo para pedir desculpas, de explicar que não tinha idéia que era um cego. Levei um soco na barriga que me jogou sentado. “Quero ver bancar o valente com alguém do seu tamanho!”, diz o agressor, se afastando.

Sinto os olhos de todos sobre mim, me fuzilando, me condenando por ter agredido o cego. Retiro-me devagar, olhando para o chão, tentando não cruzar olhares com ninguém. Vou até o bar do outro lado da rua e peço um café. O cara atrás do balcão põe o copo cheio na minha frente e, quando vou pegá-lo, cospe dentro e me xinga: “babaca!”. Sinto que também não sou bem vindo no bar. Assim que saio na rua, um grupo está me esperando. “Vamos descontar nele o que fez com o ceguinho!”, comando um garoto fedelho, e todos obedecem. Derrubam-me, levo chutes, cascudos e escarradas. Quando cansam de me agredir, me arrasto até a calçada e fico lambendo as feridas.

Só percebo que tem alguém no meu lado quando levanto a cabeça. Com os dentes cerrados, esperando ser agredido novamente, resmungo: “Cara, sei que errei, mas eu não sabia..”

“Fica frio. Adorei o que você fez. Toma um gole.” O sujeito coloca um copo de água na minha mão. Bebo gulosamente, mas sem entender nada. Quando o encaro, noto que é caolho. O olho bom me observa com ternura; o ruim, todo opaco e negro, fita o nada.

“Já ouviu o ditado em terra de cego, quem tem olho é rei? Tudo papo furado! Eu tenho um olho, mas quem ganha todas as esmolas é o cego! Todos ficam com pena dele e o cara leva dez vezes mais grana para casa todas as noites do que eu.”

“Sinto muito,” respondo.

“Pois é, pra mim não dá mais, vou me mandar. Meu cunhado vai me levar para Deodoro, lá não tem cego nenhum e vou poder pedir esmola sem competição. Quer uma carona?”

Digo que sim, animado. Dentro de minutos uma Rural caindo aos pedaços estaciona na nossa frente, nos levantamos. O caolho senta na frente e eu, sendo o caronista, me acomodo no baú, atrás. Quando começamos a partir, vejo o ceguinho apoiado no muro, esmolando. Bato no vidro que dá para a cabine e falo para o motorista: “espera um pouco, tenho um último negócio a acertar.”

Pulo do carro, corro até o cego e aplico-lhe uma banda. Ele voa no ar e cai de costas no chão. Ainda cuspo em cima e xingo: “cego filho da puta”. Antes que os locais consigam reagir – certamente me linchariam se me pegassem – pulo na Rural que arranca. Vejo uns furiosos correndo atrás do carro, tentando nos acertar com pedras. Em vão.

Olho para frente e reparo na mão do caolho estendida para fora do carro, o dedo do meio em riste, se despedindo da cidade.

3 comentários:

Anônimo disse...

Q história tenebrosa, hein!! Tá parecendo aquele filme do Oliver Stone, Reviravolta.

Cabuloso!!!!!

Anônimo disse...

Saca só André, de onde vc tirou essa pérola ??? dá até roteiro de um curta metragem .. Vislumbra só:
"Folias na Caatinga" ou "Desventuras de Carnaval"
Bizarro cara !!!

Anônimo disse...

O André tem que pegar essas idéias e levar pras músicas da Plebe. Vai ficar bom.