André Pretorious era uma figura. Quase dois metros de altura, um Sid Vicious loiro que lembra um pouco o Billy Idol. Filho do embaixador da África do Sul, estudava no mesmo colégio que eu, só que uma série na minha frente. Acho que a amizade começou quando nos demos conta que ambos odiavam os Rolling Stones. Isso, numa época em que as chamadas “big bands” (Led Zeppelin, Aerosmith, Lynard Skynard, Deep Purple, etc.) dominavam a cabeça dos jovens. Fomos salvos, em 1976, pelos Ramones, Clash e Pistols. No colégio inteiro, éramos os únicos a ouvir esses grupos novos. Entendíamos que algo estava acontecendo, que 1977 era um divisor de águas. Os outros insistiam em ouvir Free Bird do Lynard Skynard durante o recreio. Coisa que nos dava náuseas, nos obrigando a lanchar no parquinho, junto com os alunos do jardim de infância. Lá, pelo menos o barulho era mais digerível.
Naquele mesmo ano, aconteceu um mega-evento, uma espécie de olimpíada escolar de grande porte, no Rio de Janeiro. Oitenta por cento dos alunos da escola foram. Só ficaram para trás um bando de nerds, uns rebeldes e nós (até hoje não sei se me enquadro no primeiro ou segundo grupo...). Como a maioria dos professores também foram, criaram uma programação “alternativa” para aqueles que permaneceram em Brasília. Eram umas oficinas de arte, leitura e muito, muito tempo livre, que gastávamos ouvindo Never Mind the Bollocks, o primeiro do Clash, Rocket to Russia e uma coletânea punk da revista POP.
Mas éramos obrigados a participar das oficinas. Uma das quais, a oficina de bonecos, nos deu uma idéia genial. Na aula, um professor nos ensinava a costurar meias, calças e camisa, tudo junto, enchendo aquilo de jornal e pronto, um boneco tamanho humano estava produzido. Fazer o quê com esse manequim? Tínhamos a resposta. Naquela sexta, fui dormir na casa dele, a embaixada da África do Sul, no setor de embaixadas sul (Brasília é assim mesmo, uma redundância só!). Esperamos os pais deles ir dormir, e ainda enrolamos um pouco a mais ouvindo discos. Assim que estávamos certos que todos estavam nos braços de morfeu, saímos pelos fundos da embaixada e descemos uma rua que, àquela época, tinha mato em ambos os lados (a capital era assim, um monte de ruas cercadas por mato.) Com uma espingardinha de chumbo apagamos a luz de um dos postes e botamos o boneco deitado no meio do asfalto. Detalhe: para ficar mais realista, o André Pretorious tirou seu tênis novo e calçou o manequim de pano. Depois, nos enfiamos dentro do mato para observar a reação dos carros.
A rua era de pouco movimento. De madrugada, então, quase não passava ninguém. Escondidos, vimos as luzes do farol de um automóvel subindo a rua. Quando o motorista viu o boneco, freiou, repentinamente, e saiu disparado de ré. Rolamos de rir! Nosso plano tinha dado certo. O segundo carro desviou em cima da hora, catando o meio fio e acelerando do local. Estávamos satisfeitos. A nossa alegria terminou no terceiro carro: um patrulha da polícia. Esses pararam e examinaram o “atropelado”, descobrindo a farsa. Puxaram uma lanterna do carro e começaram a vasculhar os arredores, suas pistolas nas mãos.
O André entrou em pânico. Imagine só a vergonha: filho de embaixador pregando peças marotas na madrugada brasiliense. Também tinha o perigo da polícia, afinal, estávamos em plena ditadura. Poderiam achar que éramos terroristas de esquerda, assaltantes ou algo assim, agindo sorrateiramente para destruir embaixadas pela causa comunista. Foram minutos de tensão que pareceram horas. Acho que ouvi o Pretorious rezar, coisa que ele sempre negou.
Ficamos deitados na terra entre os capins gordura esperando os policiais desistirem. Quando ouvimos a patrulhinha ir embora, ainda não nos mexemos, temendo um guarda ter ficado para trás. Passado uns quinze minutos, levantamos, devagar, e constatamos que a costa estava limpa, poderíamos voltar para casa. Daí ouço o André xingar: puta que pariu! Que foi? pergunto. Levaram meus tênis novos, eram importados! Morremos de rir – eu mais do que ele, pois não tive que caminhar para casa de meias.
André Pretorious fundou, junto com o Renato Russo e Felipe Lemos, hoje baterista do Capital Inicial, o Aborto Elétrico, primeiro conjunto punk de Brasília. Para mim, é a figura mais importante de todo o rock candango, pela sua originalidade, energia, garra e determinação.
segunda-feira, março 07, 2005
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6 comentários:
Q tempo bom, hein André!?
Mateus
Faltou o Andre dizer que "Seu jogo" teve como inspiracao esse Andre Pretorius que, movendo suas peças, morreu com o remèdio que caiu do cèu.
Brasília, minha segunda casa.
Sempre ouvi histórias da sua turma André, o que fez montar todo aquele cenário na minha cabeça, apesar de nunca ter ido a Brasília.
Ano passado passei 5 dias em Brasília, trabalhando. O engraçado é que passava por algum lugar e pensava aqui aconteceu tal coisa, finalmente consegui dar imagens nas lembranças que não eram minhas.
Pois é, outro dia estava pensando: tem muita história legal para ser contada que fogem desses chavões divulgados pela mídia sobre a turma de Brasília. Aos poucos, vou publicar algumas nesse blog.
Se aceitar uma sugestão deste cara que mui humildimente vós escreve, aí vai:
"Histórias do Concreto"
André, me esclareça uma dúvida, caso possa: A primeira vez que lembro do nome do Pretorius ser citado foi num entrevistão da Legião na Bizz, lá por 1989, e ele aparece também no livro do Marchetti. Ele, apesar de protagonista e agente de várias passagens, nunca aparece em fotos. Tem ideia do porquê? Seu blog é muito legal, estou lendo até os arquivos. Grande abraço.
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